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Análise ao paganismo no filme "Midsommar: O Ritual"

set. 7, 2020 0 comments

Analisamos o filme de Ari Aster "Midsommar: O Ritual", e todos os elementos pagãos incluidos na história. (Aviso: Spoilers e conteúdo violento)

"Midsommar: O Ritual" é um filme de terror estadunidense/sueco que saiu em 2019 que segue a história de Dani (Florence Pugh), uma jovem que viaja para a Suécia com o seu namorado e amigos para participar na tradição de maio de uma comunidade pagã.

A história começa com a morte dos pais e irmã de Dani, que a deixa emocionalmente vulnerável, sem ninguém contra quem se apoiar a não ser o seu namorado desinteressado, Christian (Jack Reynor). É convidada a uma viagem à Suécia por ele e os amigos, na assunção que iria recusar. Acaba por ir, e é imediatamente acolhida pela comunidade que estão a visitar, principalmente por Pelle (Vilhelm Blomgren), que convenceu o grupo a fazer a viagem. Um a um, os amigos desaparecem até restar apenas Dani e Christian. Dani participa na competição para escolher a rainha de maio, marcando a sua junção à comunidade, e Christian é levado a procriar com uma das irmãs de Pelle. No fim, é revelado um ritual no qual são sacrificadas nove vidas, incluindo os amigos de Dani, e Christian, cujo sacrifício é escolhido pela jovem. Vemo-la sorrir e o filme acaba. 

Este filme foi muito criticado dentro de comunidades pagãs, tal como o filme anterior de Ari Aster, "Hereditário", por vilanizar as crenças pagãs. Por isto, é necessário esclarecer que este filme não é sobre paganismo, não é sobre uma comunidade tradicional, não é sobre a cultura sueca, é sobre um culto. Mostra a realidade horrenda que é um culto, como escolhem as suas vítimas e como manipulam novos membros subtilmente. Infelizmente, muitos cultos disfarçam as suas práticas como sendo religiosas. O culto representado neste filme apropria-se de crenças pagãs e corrompe-as para as suas ações, e serão essas que vamos analisar, bem como a pesquisa por parte de Aster.

Dani, prestes a juntar-se às danças de maio

O mito de Hårga

Antes da tradição da escolha da rainha de maio, uma das mulheres do culto conta o mito sueco em que uma vila foi obrigada a dançar até caír morta, no qual basearam o seu ritual. Este mito é recontado na música Hårgalåten, em que o povo inteiro de Hårga é obrigado a dançar pelo Diabo, e continua a ser prevalente no folclore sueco. Este mito dá o nome à comunidade apresentada no filme, Hårga. Temos aqui a primeira referência aos mitos nórdicos presentes na Suécia e um presságio do que acontecerá no filme.

Divindade do caos

Quando o grupo de amigos entra na Hårga, um dos homens que cumprimenta Pelle menciona brevemente a divindade Ymir, que honram ao vestir uma túnica por esta ser hermafrodita. Na mitologia nórdica, Ymir é a primeira criatura a ser criada, daí ter ambos os sexos. Esta criatura, através da sua natureza hermafrodita, cria todas as outras criaturas.

No entanto, Ymir não é uma representação da vida e fertilidade, características que associamos a divindades positivas, mas sim uma divindade do caos. Ymir é a representação do nada que existe antes da vida e é mais tarde morto pelos deuses para criar os elementos. A forma como Ymir morre é interessante em relação ao filme: a criatura é desmembrada, tal como muitos dos sacrifícios são desmembrados no ritual de Midsommar, que é feito para garantir a vida e fertilidade da comunidade. Ou seja, é ecoado o mito de Ymir durante o filme.

Existe ainda outro significado, mais poético. Ymir traduz-se para "grito", pois na mitologia pagã nórdica acredita no poder da palavra e no poder da voz. Durante o filme vemos muita vocalização durante todos os atos ritualístas, mas este significado relembra principalmente a cena em que Dani chora com as outras mulheres, e a cena em que Maja geme com as outras mulheres. Ambas "gritam", criando vida - literalmente no caso de Maja, e metaforicamente no caso de Dani, que ganha uma nova vida na Hårga.

A veneração de Ymir também implica que a Hårga crê no panteão nórdico, apesar de o mito do povo de Hårga já ser do período de transição de paganismo para cristianismo.

Dani depois de coroada rainha de maio

Beltane, a celebração de maio

Na última parte do filme, Dani participa numa celebração na qual mulheres jovens dançam em volta de um mastro florido para decidir a rainha de maio. Esta prática relembra o feriado gaélico Beltane, conhecido de forma moderna como Maio, e correspondente com o feriado nórdico Waluburgis. Neste feriado, é celebrado o início do verão, o crescimento e prosperidade da natureza. Formas de celebrar este feriado são a dança, o canto, a colheita de flores, a cozinha de pasteis e a criação de grandes fogueiras. Estas celebrações estão presentes no filme.

Podemos considerar todo o Midsommar como uma celebração do Maio distorcida. Vemos ao longo do filme a celebração através da música, canto e dança, que ganham um significado sombrio associado ao mito da Hårga. Vemos também pessoas a apanhar flores, mas fazem-no enquanto andam para trás, um ato associado a amarração amorosa. O mesmo com os pasteis, acabam por ser usados para uma amarração. Finalmente, a grande fogueira onde são queimados todos os sacrifícios, feita para garantir prosperidade. É a celebração do Maio de forma moralmente errada.

Natureza alucinogénia

Existe um contraste evidente entre os dois locais onde a história do filme decorre. Temos os prédios e cor cinza da cidade nos Estados Unidos da América, e os vastos campos verdes da Suécia. Quando o grupo chega à Suécia, são imediatamente oferecidos ervas alucinatórias, inclusivamente em forma de chá. Vemos depois o grupo num estado meditativo (Pelle tomando mesmo a posição apropriada para meditação), e Dani vê os seus pés fundirem-se com a terra. Estas ervas alucinatórias são utilizadas ao longo do filme, criado várias ilusões nos elementos naturais do filme, árvores que parecem faces, flores que parecem respirar. 

Isto remete à prática de adoração da natureza presente em crenças pagãs. Utilizam-se meditações para ligação com a natureza, em muitas das quais a pessoa imagina-se a tornar-se um com a terra. A confeção de chás também é uma forma de ligação com a natureza, visto que se está a beber o que ela nos dá. Aqui, a prática é de novo distorcida ao tornar a natureza em algo alucinogénico.

Pedra com runas futhark durante o inicio do ritual

Runas futhark

Ao longo do filme estão presentes runas em todo o lado: estão nas paredes, nas pedras, nas roupas das personagens. Estas runas são um detalhe não só pertinente à cultura nórdica, como à mensagem do filme. São explicadas ser futhark antigo durante o filme, como se o realizador deseja-se que as pessoas a fossem pesquisar. De facto, quem sabe ler runas ao ver o filme, têm outra parte da história à sua frente. As runas futhark eram utilizadas não só como um alfabeto de escrita, mas também para fins divinatórios, tendo cada uma o seu significado.

Algumas mais interessantes são as utilizadas para representar personagens. Dani é representada pelas runas Raidō e Dagaz, tanto na sua roupa como nos desenhos de Pelle, que significam respetivamente uma viagem ou destino e o dia ou clareza. Estas confirmam que Dani nunca teve escolha, ou seja, já tinha sido planeado desde o início pela comunidade ela juntar-se a eles. É "destinada ao dia", destinada a ficar no culto onde nunca anoitece. É pertinente adicionar que estas runas estão invertidas, tomando então um significado negativo, querendo dizer que Dani está presa para sempre sem uma verdadeira cura para a sua dor. 

Pelle, que nasceu na Hårga, usa a runa Fehu, que simboliza sorte, mas também previsão. É mais tarde revelado que o sueco tinha sido um dos dois homens que trouxe sacrifícios, bem como uma nova mulher para o culto. Dependendo da mulher que se juntar ao culto, o homem que a escolheu seria premiado pela sua "visão clara", enquanto o outro faria parte dos sacrifícios. Dani acaba por se juntar ao culto, garantindo a vitória a Pelle. O personagem acaba então por ter tido sorte, como habilidade de prever que Dani se juntaria ao culto facilmente.

Na última parte do filme, vemos também Christian utilizar um robe com runas, Tiwaz e Algiz. Tiwaz é uma runa que referencia o Deus nórdico do mesmo nome. Num dos mitos nórdicos, este Deus sacrifica-se para parar o monstruoso cão Fenrir, o que aponta para o sacrifício de Christian. É também a runa da vitória, confiança e autoridade, o que representa as caracteristicas que o personagem tem mostrado durante o filme: um homem egoísta e autoritário, que sai sempre a ganhar. Algiz simboliza proteção e defesa, mas neste caso, a runa está invertida, simbolizando a vulnerabilidade de Christian, que, sobre o efeito da bebida que lhe deram, já não se encontra ciente das suas ações. Quando está na cadeira de rodas, tem no seu robe a runa Naudiz, que simboliza necessidade e ajuda, que é o que ele precisa.

Os líderes de cerimónias da Hårga apresentam uma runa interessante: Ansuz. Esta runa simboliza Deus (ou Odin), que é uma referência a como líderes de cultos se comparam a divindades.

Recomendo rever o filme com uma tabela de correspondências de futhark antigo à mão, pois existem muitas mais runas durante o filme, até em figurantes e detalhes das paredes. Deixo aqui uma básica:

Quadro de significado de runas em futhark antigo

Superstições e feitiços

Para além do ritual de prosperidade feito através dos sacrifícios, conseguimos ver outras práticas de "magia" durante o filme. A mais óbvia é o feitiço de amor ou amarração que Maja faz a Christian. Aliás, é mais considerado um feitiço sexual, visto que o seu objetivo não é fazer com que ele se apaixone, mas sim que queira procriar com ela. Isto é tornado evidente pelo facto que os únicos componentes do feitiço vêm dos genitais de Maja. Participa também numa superstição sueca de apanhar flores a andar para trás para garantir marido. 

Estão presentes outras superstições durante o filme, uma delas a de pôr algo debaixo da cama ou almofada com determinada intenção. Vemos isto acontecer tanto com Christian, que acorda com um galho com a runa do amor debaixo da cama. Observamos também com um bebé que chora todas as noites nos dormitórios. Este bebé acabou de ser separado da mãe para ser criado pela comunidade, e chora por falta dela. Duas jovens colocam uma tesoura debaixo da sua almofada para "cortar" o laço maternal. 

Uma pequena superstição mais comum é a da vela de anos. Na cena em que Christian traz uma fatia de bolo para Dani, tenta acender a vela com um isqueiro. A vela recusa-se a acender. Isto é normalmente sinal de uma intenção fútil ou que não pode ser completa, tal como a tentativa de Christian de se fazer parecer um bom namorado.

Perspetivas sobre o paganismo

Mais uma teoria do que uma análise, por o namorado de Dani ser Christian, é pensado ele representar o Cristianismo. Isto leva-nos a perguntar, não poderão os outros membros do grupo ser também diferentes perspetivas sobre o paganismo?

Christian representa a perspetiva cristã histórica, em que demonstra um respeito superficial sobre as coisas, "rouba" o trabalho dos outros, não procura perceber as razões pelas quais as crenças existem, mas sim o que é feito em concreto, e age apenas por próprio interesse. Josh, que foi na viagem para escrever a sua tese, representa a perspetiva antropológica e cientifica do paganismo, sempre pouco incomodado com a ética do que acontece à sua frente, comparando tudo a outras culturas diferentes, e sendo respeitoso apenas quando é favorável à sua pesquisa. Mark é a perspetiva ignorante, que não compreende o que está a acontecer nem se interessa a compreender, mesmo quando desrespeita a cultura.

Dani e Pelle representam, respetivamente, a perspetiva do neopaganismo e paganismo tradicional. Dani junta-se à comunidade não por ter as mesmas crenças, mas sim por se procurar a si mesma e uma comunidade que a apoie. É mais comum no neopagãos não serem completamente fiéis às crenças, tendo outras razões para acreditarem na religião. Pelle nasceu na Hårga, logo acredita completamente em tudo o que lá acontece e continua as suas tradições.

Concluindo, muitos elementos pagãos e de tradição nórdica são incluídos no filme "Midsommar: O Ritual", os quais decerto levaram muita pesquisa e planeamento por parte de Aster. É bom relembrar que todas elas são distorcidas, visto que o filme trata de um culto, e nenhum bom pagão pratica desta forma mórbida. Retrata, no entanto, uma realidade importante enfrentar: os cultos religiosos existem ainda hoje, pagãos ou não. Todos os dias atraem pessoas vulneráveis ou novos religiosos para as suas redes, continuando um ciclo de manipulação. Os filmes de Aster mostram os sinais de cultos na perfeição, e como distorcem algo que é suposto ser belo.

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